Doug: Eu gosto de ouvir você falar isso, porque eu adoro muito a sua série de Quimeras. E me parece um pouco essa atualização de que você está falando, de algo material, algo espiritual. Aí a curiosidade é: como você vê a influência da religião nesse processo? Você tem alguma religião? Religiões em geral te interessam? Como isso participa desse processo?
Sergio: Toda religião me interessa, toda, sem exceção. Eu sempre gostei, sempre me interessei, sempre estudei religiões. E me interesso especialmente nas religiões animistas, que tratam a natureza como divina. Seja no Oriente, no Ocidente, na África ou nas religiões indígenas, que veem a água, o vento, o fogo como deidade. Entendem que esses elementos são deidades, porque é uma maneira inteligente que o ser humano encontrou de se aproximar do que ele é. Somos feitos de água, terra, fogo e ar. Tudo isso está dentro e fora do corpo, e fazemos parte de uma grande sopa cósmica.
Então essas relações com o mundo da natureza… Talvez o fato, Douglas, dessa minha experiência infantil junto à natureza tenha gravado dentro de mim essa importância e significado, de que um canto de pássaro, o vento, tudo isso é importante porque traz boas sensações. Então, essa relação com o mundo natural é, para mim, a minha religião. É no sentido de religar-se, que é a etimologia da palavra. Religar-se. Acho que o ser humano se desligou dessa dimensão natural e, nesse sentido, se desliga de si mesmo, porque ele é essa dimensão natural como origem. Ele se artificializa, perde essa conexão, e então cria um Deus fora dele mesmo, um Deus com barba, um Deus sem barba, com várias formas para representar algo que está aqui, agora, dentro da gente. É nesse lugar que a minha espiritualidade e religião habitam.
Gustavo: Você falou um pouco sobre isso, da espiritualidade e do seu trabalho. A gente estava conversando aqui, você comentou um pouco que teve uma fase do seu trabalho que ele não tinha as bordas e que você começou a explorar a luz, e isso foi virando quase que um foco na luz. E que com o tempo você começou a ver um pouco mais de valor, de colocar um pouco o contraste. Uma borda, às vezes uma linha reta. E eu achei interessante também que você comentou que isso também fala um pouco sobre nosso tempo, de que talvez seja uma maneira de falar, de uma tentativa que a gente tem que ter, de se conectar mais com outro que é diferente. Comenta um pouquinho de como você vê essa coisa das cores, dos contrastes e de como isso entra na sua arte?
Sergio: O percurso do artista é muito curioso. Como eu disse anteriormente, buscamos falar a mesma coisa e procuramos falar de forma mais efetiva, mais precisa. Em 2008, eu tive uma experiência muito curiosa. Falando sobre as Quimeras, que são esses seres que eu chamei de deuses, têm muito a ver com um imaginário medieval, uma cultura nordestina que preserva esse arcaico medieval. Quando vi Bosch, Goya, especialmente Bosch e Bruegel, pensei: “Meu Deus, isso é a Paraíba.” Essas figuras estão lá, e eu sempre quis falar de algo que está por trás disso.
O que é que está por trás disso? A coisa que anima isso, a coisa que faz isso ter vida, vitalidade, elã, e essa coisa é uma coisa luminosa. Por isso que eu gostava tanto do Bruegel e do Bosch, por conta da luz flamenga, que para mim é uma coisa que só o olho alcança, por isso que eu larguei o acrílico e fui para o óleo há muitos anos atrás, para chegar a uma luminosidade que é essa luminosidade espiritual, mais difusa, mais etérea, uma coisa que tem a ver com um tipo de atmosfera.
Esse processo, eu estava pintando as quimeras em São Paulo, foi logo quando cheguei em São Paulo, em 2003, e recebo um convite de uma instituição dinamarquesa para um workshop no interior da Dinamarca, numa cidade chamada Brande. E fui para lá. Eles tinham me convidado porque eles conheciam o meu trabalho da época, que eu vivia na Alemanha, que tinha muito a ver com teatro burlesco alemão, com o expressionismo alemão. E me convidaram baseado nessa referência.
E lá quando eu estava mergulhado em São Paulo com essa série de bichos, eu trabalhava meio como um chinês acorrentado, aquela coisa bem preciosíssima, e o dia de mim começava de manhã até a noite, totalmente alucinado. E aí peguei um avião, fiquei em Copenhague, era o 6 da tarde, e em Copenhague, no próprio aeroporto, entrei num trem, e viajei quatro horas até essa cidade Brande. No caminho eram 6 da tarde até às 10 da noite. No caminho era o verão, o verão escandinavo, o sol estava lá parado, no horizonte, e das 6 às 10 ele mal se mexeu naquele cantinho. Então tinha uma luz permanente, uma luz dourada, e aquela paisagem plana passando, e eu olhando para aquela janela e tal. E eu, cara, tive uma coisa que eu não sei explicar, nem vou querer explicar aqui. Eu tive uma epifania, eu tive uma experiência muito particular, eu saí dali, eu fui para Paraíba, eu fui para a Pedra, eu comecei a olhar o horizonte. Era como se aquela luz permanente e aquela paisagem passando me levou a um estado.
E eu acho interessante, eu acho que isso é perfeitamente explicável, quando você imagina que o sujeito estava há dois anos, ou três anos, não me lembro, mergulhado numa série e tal, é arrancado desse lugar, repentinamente, jogado num trem que faz uma viagem. E que te força a olhar isso. A olhar isso e aquilo é tão encantador e, pum, eu fui para outro lugar. Foi tão doido essa situação que o cara do trem, eu acordei com ele me balançando. Está tudo bem, está tudo bem, eu assim, devia estar babando. Mas enfim, eu chego em Brande e aquilo me marcou, essa experiência me marcou.
Eu tentei ver se agarrava aquilo, segurava aquilo. E passei a pintar a paisagem ao redor de mim. E os caras disseram, pô, eu chamei um pintor, chegou outro. Eles tinham que ver com a figuração, chamei um pintor, veio outro.
Enfim, voltei de lá. Aquilo ali é o último bicho que está ali em cima. É o último dos animais, você vê que ele já está se diluindo. E a partir dali vem a paisagem. Essa é a passagem. E entre para uma paisagem que novamente é referendada nessa paisagem vasta do sertão, mas ela é uma paisagem branca, branca, branca, branca, branca.
Aí isso hoje, o tempo passa, a gente fica olhando isso porque aconteceu. E faz uma leitura disso aí. E hoje eu me dou conta que quando a gente está num lugar escuro, que os bichos viviam numa caverna, era tudo dentro do preto e branco, você sai e você fica cego porque há muita luz. E foi isso que as pinturas primeiras eram. Eram as pinturas que também é a paisagem nordestina no alto sertão. Tem um filme chamado Cinemas, Aspirina e Urubus, que é tudo no branco. Porque é a luz pauleira que tem no sertão nordestino. Vai tudo branco.
E aí isso evolui e vai para uma paisagem que começa a querer ser essa experiência sensível. Então começa a eliminar pedra, árvore, tudo. E termina naquilo, né? Linha, sutil, você quase não vê onde tem o horizonte, o céu. E aí, cara, é quando tem a virada, que é quando eu penso que a pintura tem que ficar em pé, sem nenhum auxílio referencial.
Eu pintei uma série chamada Enigma, que era o que era para mim aquilo, era um enigma, não sabia o que estava fazendo, mas eu sabia que eu precisava fazer algo capaz de se sustentar como linguagem, se sustentar como pintura, sem ter nada que dissesse que isso era alguma coisa. A pintura tem que se valer daquilo que é seus valores intrínsecos, seja a matéria, a luz, a atmosfera, a cor. E foi aí que eu entrei nesse campo de experiências de cor.
Só que como a massa de cor, a massa de tinta era muito concentrada na parte interna, as bordas começaram a ficar marcadas, o resto de coisa que ficava por baixo aparecia e tal. E foi quando eu me dei conta que aquelas notícias do que tinha acontecido, que ficavam ali nas bordas, eram elas que davam um contraste muito sutil da importância do assunto que estava sendo desenvolvido. E foi aí que eu resolvi reforçar isso com a linha.
Eu usei essa sugestão que a própria pintura me trouxe para criar essa estrutura que volta a ser uma estrutura cênica, na medida que a linha lateral pode ser encarada como a cortina do teatro que eu pintava, e a linha de baixo como o tablado onde a cena se dava. E aí a luz vira o assunto da minha pintura completamente.
Junto com isso começam a chegar outras questões que veio se transformar em outras. Por exemplo, eu já comentei anteriormente com vocês, a arquitetura nordestina com as platibanda, com as linhas, com a geometria, com a cor, tudo aquilo começou a chegar de volta com uma maneira de proteção, porque aconteceu exatamente na época da pré-pandemia, quando começaram a chegar aquelas coisas, eu fiquei intrigado com como aquilo estava acontecendo.
Começaram a aparecer ícones, formas que não têm referência com nenhuma religião específica, mas têm referência a qualquer religião afro-indígena, porque era também uma coisa muito presente na minha infância. Meu pai me levava para ver os terreiros de macumba, e eu achava aquilo tudo muito mágico, tudo muito encantador. O catimbó, que é uma expressão indígena que tem muito na Paraíba, eu ia ver os caboclos fumando aquele cachimbo, eu achava aquilo tudo.
E tudo isso, de certa maneira, tinha os desenhos, tudo isso voltou, não com aquilo é isso ou aquilo é aquilo, mas uma síntese de tudo isso, uma soma de tudo isso. Então, a minha pintura, na verdade, é um grande jornal, relato, crônica, de um mundo atávico, formativo, não apenas meu, mas de todo o universo brasileiro, e que hoje alcança um lugar de sutileza e complexidade e sofisticação, que é o que eu sempre quis dar, porque, olha, quando eu fiz os bichos, os deuses, me veio essa luz, quando eles me deixaram, eles foram embora, eles esperaram que você chegasse a esse lugar de sofisticação, no trato com eles, vestisse eles, porque eu chamei de deuses, botasse uma roupa neles que só os deuses merecessem. Aí eles me libertaram desse mundo atávico e me abriram a um outro mundo que é ligado a esse mundo mais amplo, da paisagem, da sensibilidade mais ampliada, menos restrita a uma personalização, uma identificação personalizada com um animal, com isso e aquilo e o outro, mas uma coisa que pode ser qualquer coisa. Volta a pensar nesse lugar que pode ser qualquer coisa, nesse lugar de horizonte, que tanto pode ser céu quanto pode ser terra, e as duas coisas simultaneamente.