Aprender Design

31 de out de 2024

Criar Podcast: Sergio Lucena

Bia Varanis

Head de Conteúdo

Criar é o nosso podcast de entrevistas. Um espaço para falar sobre arte, design, arquitetura, música, mas principalmente: sobre criadoras e criadores.

Neste episódio, falamos com Sergio Lucena, pintor nascido em João Pessoa, na Paraíba. Uma conversa sobre sua trajetória artística, que passa pelo Movimento Armonial, com Ariano Suassuna, até a atual pesquisa dedicada à materialidade da luz.

Sergio vive e trabalha em sua casa ateliê na Serra do Itapetinga, região de Atibaia, em São Paulo, onde gravamos este papo sobre sua visão artística e de mundo.

Leia a transcrição do podcast ou escute no Spotify.

Gustavo: Sergio, é um prazer enorme te conhecer, estar aqui no seu ateliê, no seu espaço, no seu ecossistema, que nem você falou. A gente é muito fã do seu trabalho e esse é um papo aberto. A gente vai conversar um pouco aqui sobre a sua carreira, sobre a sua obra, sobre a sua visão de arte, de vida. Então, primeiro, eu queria te agradecer. A gente está muito feliz de estar aqui.

Sergio: Eu que agradeço a presença de vocês. Bem-vindos.

Gustavo: Obrigado.

Doug: Obrigado pela acolhida. 

Gustavo: Para começar, talvez, para a gente começar o nosso papo, acho que seria legal você começar contando um pouquinho dessa história. A gente está aqui em São Paulo, mas você não é de São Paulo, conta um pouquinho para a gente como foi a sua infância, como foi que você começou talvez a se interessar, ou se conectar um pouco com o que você acabou se transformando com a arte. Como foi a sua infância?


Sergio:  Eu acho que a infância, na verdade, é o alicerce, é o chão de tudo que eu sou, de tudo que eu faço, inclusive. Eu tive o privilégio, eu diria, o grande privilégio de ter minha infância no sertão da Paraíba. Até os sete anos eu vivi lá e essa experiência, ela é seminal na medida que ela guarda os valores que me sustentam até hoje. A experiência junto à natureza, a experiência junto àquele ambiente arcaico, vasto, árido, mas de uma beleza descomunal e de uma cultura muito potente. Então, a vivência no interior da Paraíba, no sertão da Paraíba, na fazenda do meu avô, é o maior tesouro que eu tenho e a matriz de todo o meu pensamento e de toda a substância do meu trabalho.


Eu digo a substância na medida que a pintura, para mim, é uma formalização de uma dimensão subjetiva e de uma dimensão espiritual. E tudo isso, eu diria, está fundado nessa origem, no sertão da Paraíba. E é isso, é o que me sustenta até hoje.

Gustavo: Você passou a infância numa fazenda?


Sergio: Até os sete anos. Depois vim para a capital para estudar, mas voltava nas férias. Esse primeiro momento foi bastante importante na medida que eu tinha uma... É o período formativo, o período em que você está aberto de forma não julgadora a tudo que está em volta. E o que estava em volta eram as maravilhas do universo, eram as plantas, os animais e as pessoas mais honestas que eu conheci em toda a minha vida até hoje, porque eram pessoas simples. E pessoas que não tinham... subterfúgios, elas eram o que eram, o que diziam, faziam. Enfim, era uma coisa muito simples. E essa simplicidade, para mim, é uma dimensão espiritual muito importante, porque ela fala de coisas que são incontestáveis, são coisas que me inspiram na medida que a ideia de lealdade, a ideia de confiabilidade, isso tudo ficou muito forte para mim com essa experiência, com essas pessoas simples que me inspiram até hoje, eu diria.


Gustavo: E conta um pouquinho mais dos seus pais, você tem irmão?


Sergio: Tenho, meus pais já são falecidos. Meu pai era um pequeno comerciante, minha mãe professora de português, Geralda e meu pai, Severino. Eu aos 11 anos passei a trabalhar com meu pai, fui balconista na lojinha dele e trabalhei com ele até os 20 anos. Depois a pintura me tirou da loja. Eu me especializei na época em vender perfume. Eu adorava perfume, adoro perfume até hoje. Perfume tem uma magia para mim, tem um encantamento. É interessante pensar nisso, porque o perfume é uma experiência sensível, é uma experiência que traz uma identificação. E até hoje isso me chama a atenção, como aquilo era encantador para mim. Foi aquilo que eu vendi, eu virei consultor de perfume. É bacana porque quando eu saí da loja, simultaneamente larguei dois cursos. Eu larguei o curso que eu fazia na Universidade Federal da Paraíba de Física e de Psicologia. Foi um choque para a família. Largou o emprego, largou os estudos.

Gustavo: Ao mesmo tempo.

Sergio: Ao mesmo tempo. E fui fazer o quê? Fui pintar. Fui pintar. Mas enfim, eu fui pintar. Eu sempre desenhei. Você perguntou sobre como isso aconteceu na minha vida.

Doug: Desde criança?

Sergio: Desde sempre. Desde que eu me lembro, eu me lembro com papel, com um carvão, riscando alguma coisa. Desde sempre desenhei. Eu tinha no desenho um lugar de formalizar um mundo, um mundo subjetivo, um mundo de fantasias. E aquilo era minha realidade maior, eu estava naqueles desenhos, naquela coisa, que era uma resposta à experiência que eu tinha na vida.

Quando eu, aos 17 anos, já em João Pessoa, conheci o artista Flávio Tavares, que eu nunca tinha visto pintura até então, não sabia o que era, não havia, em função do ambiente do qual eu sou originário, não havia uma perspectiva de arte, uma perspectiva de um artista. Ninguém imaginava alguém ser artista, muito menos viver como artista. Então, eu conheci um artista e isso foi, para mim, um choque. Eu disse, meu Deus, o cara vive disso, o cara faz isso. 


Gustavo: Isso existe?

Sergio: Isso existe, exatamente. Fiquei muito encantado com isso. E aí, cheguei para ele, o Flávio, e disse, olha, eu gosto muito de desenhar, eu queria que você visse os desenhos que eu faço. E eu levei um calhamaço de desenhos para ele ver, e ele olhou para aquilo e disse, cara, venha para cá, venha, frequente o meu ateliê. Ele foi muito generoso, muito generoso. 

Doug: E ali foi a sua primeira escola, né?


Sergio: Exatamente, foi a primeira. Eu tive uma formação que eu chamaria de clássica, porque eu tive formação de ateliê. Eu tive uma formação, não foi de universidade, nada. Foi dentro do ateliê de um artista, observando ele trabalhar, que ele não tinha didática, disse faça isso, faça aquilo. Eu via ele fazer, e eu procurava, e aqui e lá ele entrava no meu trabalho, no que eu estava fazendo, mexia, dizia, olha, é por aqui. Não havia ego, não havia, ai, mexeu no meu trabalho. Não, era lindo o que acontecia, né? Flávio foi um pai nesse aspecto, assim, de me acolher, de me iniciar num mundo.

Quando eu entrei no ateliê dele, a primeira vez, aos 17 anos, também foi uma experiência que eu nunca vou esquecer, porque foi... eu quando entrei ali dentro e vi aquele ambiente, eu entendi na hora que aquilo era o meu lugar. Na hora, assim, não teve dúvida, assim, meu Deus, é isso que eu sempre quero. E é isso, eu acho que tem coisas na vida que são determinantes, né? Você se depara com elas e diz, não, é isso, não tem questionamento. Então foi por isso que eu larguei tudo. Fui atrás do que fazia sentido pra mim.

Doug: Como que foi... ou se teve algum impacto? Isso de uma primeira infância, é, fazenda, enfim, e depois uma experiência na cidade?

Sergio: Teve um impacto imenso, Douglas. Eu tive um impacto de choque cultural, como se diz, no sentido de que eu, como eu te falei, eu vivi num ambiente muito honesto, de verdade, onde as pessoas não tinham... não fingiam nada, elas eram o que eram e tal. E foi pra um lugar, embora seja na época, década de 70, 60, 70, era uma cidade muito provinciana, a João Pessoa, mas já era uma capital e era, comparado ao sertão, era outro mundo. E o que me chocou profundamente foi a impressão que as pessoas me passavam, na medida que elas não tinham aquela pureza e aquela garantia de honestidade que eu sentia quando criança no sertão, as pessoas tinham um comportamento diferente daquilo que elas diziam, ou falavam, ou afirmavam. Então essa dubiedade me chocou muito. Foi daí que meus desenhos se transformaram profundamente e eu passei a desenhar circos e teatros. Porque pra mim o mundo era um circo e um teatro. A partir de então as pessoas eram atores de um grande cenário e aquilo foi, no primeiro momento, muito difícil. Difícil porque eu me sentia inadequado, me sentia... não fazia parte daquilo. Até que me adaptar levou tempo, mas isso repercutiu muito nos meus desenhos e foi o assunto da minha primeira pintura, já quando eu conheço Flávio, essa crítica social que eu fazia a partir de uma sátira, utilizando máscaras, utilizando as figuras como atores de teatro e circo.

Gustavo: E como foi assim? Você teve uma atitude muito corajosa, mas que eu imagino que na hora foi o que fazia sentido e você foi, mas você teve uma ruptura muito grande, de sair de um lugar e ir pra outro, família, começar a trabalhar um pouco desse começo dessa vida adulta. Como foi esses primeiros anos vivendo da sua arte, num lugar novo, numa perspectiva diferente, começando a viver esse espaço?

Sergio: Olha, Gustavo, eu vou dizer uma coisa a você. Se existe uma coisa abençoada na vida é a ignorância. Porque com ela você tem capacidade de fazer tudo porque não sabe o que vai acontecer. Isso segue até hoje. Se eu construí esse ateliê, essa casa, esse ecossistema foi porque eu não tinha ideia do que eu ia enfrentar. Minha vida inteira foi isso. 

É um ato de fé, no sentido mais profundo da palavra. Eu acredito no que faço, sempre acreditei e vou fazendo. E nesse processo, eu, claro, naturalmente, enfrento as dificuldades que elas se colocam, mas elas existem exatamente para questionar se o que você quer, se o que você busca, é de fato aquilo que você quer e que você busca. 

Então, a dificuldade não é um problema. Ela é, na verdade, uma confirmação, na medida que você a enfrenta e a supera. E, com isso, você estabelece o seu caminho.

Então, certamente, não foi fácil, eu enfrentei toda a rejeição que você possa imaginar. Toda que você possa imaginar. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha prazer, e isso eu acho que é mágico, eu tinha prazer no meu trabalho. Eu tenho alegria no meu trabalho, e tenho alegria até hoje. Se eu não tivesse essa alegria, eu não faria o que eu faço. Isso, pra mim, é o dado que garante que o meu caminho é bom, pra mim. É um bom caminho pra mim. Essa alegria e esse prazer que eu tenho em fazer o que eu faço.

Doug: Queria entrar um pouco na dimensão de linguagem, sabe. Então, imagina que você foi falando um pouco da infância, você ficou imaginando um pouco das paisagens. Caatinga e tal. E depois você falou um pouco do teatro, do circo, que já me traz uma coisa meio itinerante, mambembe, uma coisa vernacular. Como você dialoga com essas referências acumuladas, como é que você entende o seu processo de maturação, talvez, da sua linguagem?


Sergio: Douglas, você falou de duas manifestações artísticas e culturais que eu conheci quando eu era menino. Pra ter ideia, a primeira pintura que eu vi na minha vida, alguém pintar, foi um cara que pintava cartaz do cinema itinerante, que vinha uma vez por mês lá pra cidadezinha. O cara pintando um cowboy, um faroeste, uma coisa assim. Aquilo foi também uma coisa que eu nunca vou esquecer, que me impactou muito. Você vê como essas coisas que fazem parte do seu caminho, elas já dão notícias, o cara pintando ali, eu fiquei assim, assombrado. E junto com isso, eu tinha lá no interior a vinda itinerante dos teatros mambembes, dos circos sem teto, e era esse mundo mágico, esse mundo alternativo, esse mundo que tratava da realidade sobre um prisma cênico, um prisma que me encantava. Então, esses elementos são elementos formativos, e eles participaram do meu trabalho e participam do meu trabalho até hoje. 

Hoje, desde sempre, o tema essencial da minha pintura é a luz. E quando eu falo luz, é a ideia de expressão da luminosidade na matéria. Só que, no início, essa luz era uma luz referendada pela luz do teatro, a luz cênica, a luz do foco. E havia toda uma narrativa, mas tinha uma ênfase nos focos de luz. 40 anos depois, a ênfase é a luz em si mesma, sem um elemento que seja protagonista. O protagonismo foi assumido pela própria materialidade da luz. Então, as estruturas da minha pintura remetem à estrutura formal da minha pintura do início, a estrutura teatral cênica, com cortinas e tablado. Hoje eu trabalho isso com linhas, que, de certa maneira, criam uma estrutura em que a ênfase da luz está no elemento luminoso central, que é uma construção matérica de pintura, de atmosfera. É curioso como, no fundo, a gente a vida inteira vai falando, busca dizer a mesma coisa, e com o passar dos anos, essa coisa vai sendo dita de forma mais objetiva, menos prolixa, com maior poder de síntese, mas em contraposição, com maior complexidade.

Então a construção de uma cor hoje pra mim, requer uns 40 anos de experiências pelo menos para chegar a esse lugar de sutileza,  esse lugar que é o assunto que, no fundo, voltando a essa questão formativa, é a experiência sensível que eu tenho e tive e continuo tendo junto à paisagem. Na infância, a paisagem vasta, silenciosa e extremamente árida, mas, ao mesmo tempo, de uma beleza muito particular, que era uma coisa mágica para mim, me encantava profundamente. Então, o fato das coisas que eu sinto, que eu sentia, que eu continuo sentindo junto à natureza, eles são o eixo, que conduz, que me norteia na busca dessa experiência formalizada em pintura. 

Eu busco, na verdade, compartilhar de uma dimensão sutil, subjetiva. Da minha experiência junto à natureza, a partir do meu trabalho, e compartilhar com o meu público, que eles possam... Não que eu queira para eles, dizer o que estou vivendo, não. Eu quero criar um lugar que foi importante para mim, que tem significado para mim, mas que vai repercutir no lugar que é importante para eles, porque cada um experiência uma obra de arte a partir do seu background, a partir do seu repertório. Mas o elemento catalisador dessa experiência, que remete a um valor que o sujeito tem, é o mesmo elemento que formaliza uma dimensão de significado que eu vivi, que eu tenho dentro de mim. Então, é esse lugar de compartilhamento do que é essencial que me interessa em pintura.

Enquanto linguagem, eu sou um clássico, no sentido do pensamento plástico. Eu acredito muito na pintura como uma linguagem que tem um histórico longo, mas ainda há muito ainda, eu acho que é infinito, para desenvolver. Porque ela se atualiza na medida da demanda do seu tempo, na medida da demanda espiritual da época. Ela atende à demanda espiritual da época.

Eu trabalho com materiais que vêm sendo manipulados há mais de 600, 700 anos, tratando de uma dimensão de demanda espiritual que é, a meu ver, um tempo de reflexão urgente frente a um processo de colapso que estamos enfrentando enquanto sociedade, enquanto modelos econômicos, enquanto a questão da sustentabilidade dos recursos naturais. Eu acho que estamos diante de um grande paradigma, e é preciso parar um tempo, olhar o que está acontecendo e entender que isso requer uma revisão.

Estou falando essas coisas porque são coisas que me ocorrem quando olho para um trabalho meu. Ele me convida a voltar para o sertão, me convida a me sentar e olhar aquele horizonte infinito e pensar como aquilo é importante para a minha vida e como é importante para o mundo. Acho que a natureza é uma garantia de que estaremos aqui daqui a 100 anos. Se não cuidarmos, não estaremos.

Gustavo: Você falou um pouco sobre isso, talvez a relação do artista ou da arte com o momento, com o presente. Tem uma fala sua que eu gosto, onde você comenta sobre a pintura ser uma conexão do mundo material com o mundo mais imaterial. Comenta um pouco mais sobre isso? Como você entende a arte de forma ampla e como você entende a arte nesse momento rápido e um pouco maluco que estamos vivendo?

Sergio: Existem todas as formas de expressão, do entretenimento, o que for. Mas existe também um lugar dentro da arte que é um convite a essa experiência de conexão entre aquele lugar que existe dentro de cada um de nós, que é íntimo, que é solitário, com o que está fora.

Essa conexão se dá através de uma... Vou tentar fazer uma analogia, que acho que é mais fácil. Quando eu era menino, subia uma pedra que tem lá no interior, na Paraíba, na fazenda. A fazenda não existe mais, mas a pedra vai existir até o fim dos tempos. E eu subia nessa pedra imensa, imensa para aquele lugar, que é uma planície, e a pedra devia ter uns 300 metros. Eu subia lá e de lá de cima eu conseguia ver 360 graus. Eu tinha sete, oito anos, e a sensação que aquilo me dava era de um pertencimento cósmico. Claro, estou falando com palavras de hoje. Jamais saberia o que era pertencimento cósmico aos sete ou oito anos. Mas eu tinha uma sensação. Tive uma experiência feliz de pertencimento, de participação mística com o universo. Eu me senti o centro do universo ali, olhando o mundo em 360 graus.

Uma das coisas que me encantava nessa experiência de olhar era o horizonte que, pela distância, era indefinido. Uma hora era a Terra, uma hora era o céu. Eu não conseguia focar onde começava a Terra e terminava o céu, e vice-versa. Então, esse lugar, o horizonte distante, como aqui, que vocês puderam ver, propicia um espaço que não é uma coisa nem outra, nem é céu nem é Terra, é um lugar de possibilidades. É um lugar onde qualquer coisa pode ser. Tudo pode acontecer nesse espaço indefinido.

Então, essa ideia de arte para mim é esse espaço indefinido. Esse espaço onde tudo pode acontecer. Esse lugar que não é concretamente real e ao mesmo tempo é concretamente real, porque é feito de matéria, é feito de tinta, é feito de pigmento, mas trata de uma dimensão absolutamente subjetiva.

É uma conexão muito interessante entre o que é a realidade e a subjetividade, a concretude e a subjetividade. Eu gosto muito da ideia de que a arte é o elo entre essas duas coisas. E cria esse espaço onde tudo pode acontecer, onde você pode realizar o que ainda não sabe que é. Você não sabe, vai acontecer.


Eu sempre entendi pintura como um espaço onde eu aconteço. Eu existo na pintura. Sou eu até hoje, sou eu amanhã, depois daquele quadro pronto. Porque aquele quadro estabeleceu uma nova consciência de mim mesmo, um novo estágio de percepção da realidade que eu não tinha até então. A pintura formalizou esse estágio. E aí, minha vida inteira, tudo passa a ser, como eu posso chamar, passa a acontecer a partir desse novo referencial. Ela impacta a minha vida, impacta tudo. Então, são essas relações com o mundo matérico e o mundo subjetivo que para mim interessam, com a síntese que a arte pode sugerir, pode propiciar.

Doug: Você diria que a sua arte é uma arte espiritual?

Sergio: Eu diria que toda a arte é espiritual. Não só a minha, qualquer arte tem essa dimensão, porque ela trata exatamente dessa formalização da dimensão subjetiva. A espiritualidade, não a religiosidade, no sentido dogmático, é uma dimensão da vida. Todos nós temos uma dimensão subjetiva. Essa dimensão subjetiva é a dimensão espiritual. É a dimensão do sonho, do desejo, daquilo que você quer intuitivamente realizar como potencialidade. Essa é a dimensão espiritual. E a matéria é a formalização dessa dimensão. Ou seja, a realização prática de uma dimensão que está num plano ainda inacessível, mas que se realiza, seja em arte ou em qualquer outra área.

Quantos cientistas comentam que encontraram a solução no meio do sono, acordaram com o famoso “Eureka” para resolver o problema. Há um lugar de possibilidades que precisa ser aterrado, precisa vir para o mundo, precisa se transformar em uma realidade para que você diga: isso existe. Essa é a diferença entre a loucura e a arte, e o artista. O louco se dissolve nesse universo, enquanto o artista volta e traz uma notícia desse universo, formaliza um aspecto dele. Ele não formaliza o universo, porque isso é impossível, mas ele formaliza um aspecto desse universo, que permite que a gente tenha um pouco mais de concretude e conexão com essas duas dimensões. Nesse aspecto, toda a arte, para mim, é espiritual.

Doug: Eu gosto de ouvir você falar isso, porque eu adoro muito a sua série de Quimeras. E me parece um pouco essa atualização de que você está falando, de algo material, algo espiritual. Aí a curiosidade é: como você vê a influência da religião nesse processo? Você tem alguma religião? Religiões em geral te interessam? Como isso participa desse processo?


Sergio: Toda religião me interessa, toda, sem exceção. Eu sempre gostei, sempre me interessei, sempre estudei religiões. E me interesso especialmente nas religiões animistas, que tratam a natureza como divina. Seja no Oriente, no Ocidente, na África ou nas religiões indígenas, que veem a água, o vento, o fogo como deidade. Entendem que esses elementos são deidades, porque é uma maneira inteligente que o ser humano encontrou de se aproximar do que ele é. Somos feitos de água, terra, fogo e ar. Tudo isso está dentro e fora do corpo, e fazemos parte de uma grande sopa cósmica. 


Então essas relações com o mundo da natureza… Talvez o fato, Douglas, dessa minha experiência infantil junto à natureza tenha gravado dentro de mim essa importância e significado, de que um canto de pássaro, o vento, tudo isso é importante porque traz boas sensações. Então, essa relação com o mundo natural é, para mim, a minha religião. É no sentido de religar-se, que é a etimologia da palavra. Religar-se. Acho que o ser humano se desligou dessa dimensão natural e, nesse sentido, se desliga de si mesmo, porque ele é essa dimensão natural como origem. Ele se artificializa, perde essa conexão, e então cria um Deus fora dele mesmo, um Deus com barba, um Deus sem barba, com várias formas para representar algo que está aqui, agora, dentro da gente. É nesse lugar que a minha espiritualidade e religião habitam.

Gustavo: Você falou um pouco sobre isso, da espiritualidade e do seu trabalho. A gente estava conversando aqui, você comentou um pouco que teve uma fase do seu trabalho que ele não tinha as bordas e que você começou a explorar a luz, e isso foi virando quase que um foco na luz. E que com o tempo você começou a ver um pouco mais de valor, de colocar um pouco o contraste. Uma borda, às vezes uma linha reta. E eu achei interessante também que você comentou que isso também fala um pouco sobre nosso tempo, de que talvez seja uma maneira de falar, de uma tentativa que a gente tem que ter, de se conectar mais com outro que é diferente. Comenta um pouquinho de como você vê essa coisa das cores, dos contrastes e de como isso entra na sua arte?


Sergio: O percurso do artista é muito curioso. Como eu disse anteriormente, buscamos falar a mesma coisa e procuramos falar de forma mais efetiva, mais precisa. Em 2008, eu tive uma experiência muito curiosa. Falando sobre as Quimeras, que são esses seres que eu chamei de deuses, têm muito a ver com um imaginário medieval, uma cultura nordestina que preserva esse arcaico medieval. Quando vi Bosch, Goya, especialmente Bosch e Bruegel, pensei: “Meu Deus, isso é a Paraíba.” Essas figuras estão lá, e eu sempre quis falar de algo que está por trás disso.


O que é que está por trás disso? A coisa que anima isso, a coisa que faz isso ter vida, vitalidade, elã, e essa coisa é uma coisa luminosa. Por isso que eu gostava tanto do Bruegel e do Bosch, por conta da luz flamenga, que para mim é uma coisa que só o olho alcança, por isso que eu larguei o acrílico e fui para o óleo há muitos anos atrás, para chegar a uma luminosidade que é essa luminosidade espiritual, mais difusa, mais etérea, uma coisa que tem a ver com um tipo de atmosfera. 


Esse processo, eu estava pintando as quimeras em São Paulo, foi logo quando cheguei em São Paulo, em 2003, e recebo um convite de uma instituição dinamarquesa para um workshop no interior da Dinamarca, numa cidade chamada Brande. E fui para lá. Eles tinham me convidado porque eles conheciam o meu trabalho da época, que eu vivia na Alemanha, que tinha muito a ver com teatro burlesco alemão, com o expressionismo alemão. E me convidaram baseado nessa referência. 

E lá quando eu estava mergulhado em São Paulo com essa série de bichos, eu trabalhava meio como um chinês acorrentado, aquela coisa bem preciosíssima, e o dia de mim começava de manhã até a noite, totalmente alucinado. E aí peguei um avião, fiquei em Copenhague, era o 6 da tarde, e em Copenhague, no próprio aeroporto, entrei num trem, e viajei quatro horas até essa cidade Brande. No caminho eram 6 da tarde até às 10 da noite. No caminho era o verão, o verão escandinavo, o sol estava lá parado, no horizonte, e das 6 às 10 ele mal se mexeu naquele cantinho. Então tinha uma luz permanente, uma luz dourada, e aquela paisagem plana passando, e eu olhando para aquela janela e tal. E eu, cara, tive uma coisa que eu não sei explicar, nem vou querer explicar aqui. Eu tive uma epifania, eu tive uma experiência muito particular, eu saí dali, eu fui para Paraíba, eu fui para a Pedra, eu comecei a olhar o horizonte. Era como se aquela luz permanente e aquela paisagem passando me levou a um estado. 

E eu acho interessante, eu acho que isso é perfeitamente explicável, quando você imagina que o sujeito estava há dois anos, ou três anos, não me lembro, mergulhado numa série e tal, é arrancado desse lugar, repentinamente, jogado num trem que faz uma viagem. E que te força a olhar isso. A olhar isso e aquilo é tão encantador e, pum, eu fui para outro lugar. Foi tão doido essa situação que o cara do trem, eu acordei com ele me balançando. Está tudo bem, está tudo bem, eu assim, devia estar babando. Mas enfim, eu chego em Brande e aquilo me marcou, essa experiência me marcou. 

Eu tentei ver se agarrava aquilo, segurava aquilo. E passei a pintar a paisagem ao redor de mim. E os caras disseram, pô, eu chamei um pintor, chegou outro. Eles tinham que ver com a figuração, chamei um pintor, veio outro. 

Enfim, voltei de lá. Aquilo ali é o último bicho que está ali em cima. É o último dos animais, você vê que ele já está se diluindo. E a partir dali vem a paisagem. Essa é a passagem. E entre para uma paisagem que novamente é referendada nessa paisagem vasta do sertão, mas ela é uma paisagem branca, branca, branca, branca, branca. 

Aí isso hoje, o tempo passa, a gente fica olhando isso porque aconteceu. E faz uma leitura disso aí. E hoje eu me dou conta que quando a gente está num lugar escuro, que os bichos viviam numa caverna, era tudo dentro do preto e branco, você sai e você fica cego porque há muita luz. E foi isso que as pinturas primeiras eram. Eram as pinturas que também é a paisagem nordestina no alto sertão. Tem um filme chamado Cinemas, Aspirina e Urubus, que é tudo no branco. Porque é a luz pauleira que tem no sertão nordestino. Vai tudo branco. 

E aí isso evolui e vai para uma paisagem que começa a querer ser essa experiência sensível. Então começa a eliminar pedra, árvore, tudo. E termina naquilo, né? Linha, sutil, você quase não vê onde tem o horizonte, o céu. E aí, cara, é quando tem a virada, que é quando eu penso que a pintura tem que ficar em pé, sem nenhum auxílio referencial. 

Eu pintei uma série chamada Enigma, que era o que era para mim aquilo, era um enigma, não sabia o que estava fazendo, mas eu sabia que eu precisava fazer algo capaz de se sustentar como linguagem, se sustentar como pintura, sem ter nada que dissesse que isso era alguma coisa. A pintura tem que se valer daquilo que é seus valores intrínsecos, seja a matéria, a luz, a atmosfera, a cor. E foi aí que eu entrei nesse campo de experiências de cor.

Só que como a massa de cor, a massa de tinta era muito concentrada na parte interna, as bordas começaram a ficar marcadas, o resto de coisa que ficava por baixo aparecia e tal. E foi quando eu me dei conta que aquelas notícias do que tinha acontecido, que ficavam ali nas bordas, eram elas que davam um contraste muito sutil da importância do assunto que estava sendo desenvolvido. E foi aí que eu resolvi reforçar isso com a linha. 

Eu usei essa sugestão que a própria pintura me trouxe para criar essa estrutura que volta a ser uma estrutura cênica, na medida que a linha lateral pode ser encarada como a cortina do teatro que eu pintava, e a linha de baixo como o tablado onde a cena se dava. E aí a luz vira o assunto da minha pintura completamente. 

Junto com isso começam a chegar outras questões que veio se transformar em outras. Por exemplo, eu já comentei anteriormente com vocês, a arquitetura nordestina com as platibanda, com as linhas, com a geometria, com a cor, tudo aquilo começou a chegar de volta com uma maneira de proteção, porque aconteceu exatamente na época da pré-pandemia, quando começaram a chegar aquelas coisas, eu fiquei intrigado com como aquilo estava acontecendo. 

Começaram a aparecer ícones, formas que não têm referência com nenhuma religião específica, mas têm referência a qualquer religião afro-indígena, porque era também uma coisa muito presente na minha infância. Meu pai me levava para ver os terreiros de macumba, e eu achava aquilo tudo muito mágico, tudo muito encantador. O catimbó, que é uma expressão indígena que tem muito na Paraíba, eu ia ver os caboclos fumando aquele cachimbo, eu achava aquilo tudo. 

E tudo isso, de certa maneira, tinha os desenhos, tudo isso voltou, não com aquilo é isso ou aquilo é aquilo, mas uma síntese de tudo isso, uma soma de tudo isso. Então, a minha pintura, na verdade, é um grande jornal, relato, crônica, de um mundo atávico, formativo, não apenas meu, mas de todo o universo brasileiro, e que hoje alcança um lugar de sutileza e complexidade e sofisticação, que é o que eu sempre quis dar, porque, olha, quando eu fiz os bichos, os deuses, me veio essa luz, quando eles me deixaram, eles foram embora, eles esperaram que você chegasse a esse lugar de sofisticação, no trato com eles, vestisse eles, porque eu chamei de deuses, botasse uma roupa neles que só os deuses merecessem. Aí eles me libertaram desse mundo atávico e me abriram a um outro mundo que é ligado a esse mundo mais amplo, da paisagem, da sensibilidade mais ampliada, menos restrita a uma personalização, uma identificação personalizada com um animal, com isso e aquilo e o outro, mas uma coisa que pode ser qualquer coisa. Volta a pensar nesse lugar que pode ser qualquer coisa, nesse lugar de horizonte, que tanto pode ser céu quanto pode ser terra, e as duas coisas simultaneamente.

Doug: Agora a pouco a gente estava conversando e você tocou no ponto que eu acho que é muito interessante, que é a identidade, o Brasil, a nossa linguagem, e aí eu acho que você, já li algumas entrevistas onde você fala muito sobre essa linguagem vernacular, linguagem popular, a influência de Suassuna, enfim, queria que você falasse um pouco mais sobre isso, como que você vê esse lugar da identidade, da arte brasileira, como é que você se vê nesse lugar também, e como é que essas experiências todas que você tem, você fala de uma epifania no outro país, mas que te traz para cá de volta, como é que isso participa? Como é que você dialoga com isso?


Sergio: Olha, no Brasil eu acho que essa questão da identidade é primeiramente uma questão do indivíduo, ou seja, ele saber-se quem é dentro do contexto social e cultural da qual ele oriunda, mas ao se reconhecer, ele contribui a uma outra coisa, que é a questão da identidade de povo, da sua comunidade. Eu acho que o Brasil é de uma complexidade ímpar, até porque eu acho que são muitos Brasils com uma língua só, que também é um grande fenômeno. Você vê a América Espanhola toda salpicada, dividida. O português, de uma forma curiosa, conseguiu manter essa unidade pela língua.

A forma curiosa foi a miscigenação. O português foi estratégico. Ele disse não, fecha os olhos da igreja, a igreja disse ok, e vamos fazer menino. Então é menino com indígena, menino com preto, mas é gente para ocupar esse lugar. Só que esse processo gerou um mundo novo, um mundo que não existia na Europa, que não existia aqui, que não existia na África. As religiões de origem africana não existem na África. Elas são religiões absolutamente miscigenadas, com a presença de um porquê, duas questões interessantes que são de origem informativa. Tanto o povo ibérico já era miscigenado pelos mouros, 700 anos de ocupação moura, já deixou o português misturado, o ibérico de uma forma geral. E os bantos, que são os primeiros que vêm da África, eles tinham uma cultura de reconhecer os deuses da terra. 

Então eles chegavam aqui e perguntavam ao cara quem é o Deus aqui? Ah, é Tupã. Então vamos ter que ver quem é Tupã e fazer uma conexão. Então essa capacidade de organização misteriosa gerou um povo muitíssimo particular, que é o povo brasileiro com essência.

E é esse povo brasileiro com essência que um grande historiador brasileiro chamado Luiz Antônio Simas elogia. É o malandro. E o malandro, no sentido da palavra, é o gênio da raça. É o cara capaz de dar salto solto e resolver todas as situações dentro de uma precariedade sem paralelo. O malandro não é malfeitor de jeito nenhum. O malandro é o sujeito capaz de driblar a adversidade com alegria, com sagacidade, com personalidade, com samba, com forró, com batuque. Esse cara é mágico, esse cara é o transformador do mundo. E é esse brasileiro que me interessa. É esse Brasil que me interessa. É esse Brasil mágico, esse Brasil transformador, esse Brasil capaz de se reinventar a todo momento.

E por isso que eu me entristece quando eu vejo esse sectarismo, esse radicalismo, querendo, sei lá, uma coisa... Está vivendo um tempo estranho, a meu ver, um tempo obscurantista, um tempo intolerante. A grande beleza do Brasil é a tolerância. A grande beleza do Brasil era o cara ir de manhã pra igreja e de tarde para o terreiro, entendeu? E resolver as suas questões dessa maneira, sem preconceito, sem... Só que isso... Bem, eu acredito muito no Brasil, acredito que essas coisas todas vão ser resolvidas a longo prazo, porque eu vejo esse país como uma experiência étnica global.

Eu acho que esse país é uma espécie de projeto de mundo, de futuro, de civilização, que ainda não se confirmou. Porque o que a gente vê pela minha experiência fora, a gente tem aqui uma capacidade, uma possibilidade de... de uma contribuição civilizatória única, cara. Que é essa coisa doce e ao mesmo tempo criativa, sabe? Eu não sei, eu sou muito otimista, sabe? Eu sou muito otimista e sonhador. Senão não era pintor, né?


Gustavo: E um Brasil colorido, né? Quando a gente chega aqui no seu ateliê, a cor, o azul é um azul incrível, chama muita atenção. E a gente estava conversando... Você comentou uma coisa que eu nunca tinha reparado e que faz muito sentido, que é como às vezes em ambientes aspas, sofisticados ou mais elitizados, a gente vê mais o predomínio do branco e como em ambientes mais populares ou em festas populares, a cor aparece mais. Acho que tem um pouco a ver com isso que você está falando, né? Desse Brasil misturado, miscigenado e também na essência colorida, que é um pouco do que você traz no seu trabalho.


Sergio: Você sabe que naquele momento lá do modernismo brasileiro, o Mário de Andrade falou isso pra Tarsila. Ele disse, olha, vai ver as festas do interior, eles pintam rosa, eles pintam aquele azulzinho, neném. Vai ver isso, vai fazer isso. E ela fez isso. Você vê a pintura de Tarsila em algum momento, ela começa a se apropriar dessa cor brasileira, né? Que é uma cor sem pudor, né? 

Tem uma coisa muito interessante também que tem a ver com esse mundo precário. Fizeram uma pesquisa lá da Universidade da Paraíba sobre uma cidade chamada Cabedelo, uma cidade portuária. E a pesquisa era a criatividade, a riqueza e a diversidade cromática das casas em Cabedelo. É um colorido imenso, né? E aí mil teses, isso porque é aquilo que é. E aí levaram um pescador pra dar um depoimento. E ele disse, é, sabe por que a gente pinta assim? Porque quando acaba a tinta de pintar o barco, o que sobra a gente vai usando na casa. Então a casa é o que sobrou das cores que iam pintar os barcos. Só que eles fazem isso como uma ingenuidade e fica lindo. E eles gostam. E eu acho, mas não foi porque... Ah, entendeu? Foi porque é o que tinha.


Como toda comida que hoje é comida paeja, é o resto, é o que sobrou, é a mistura que... É o sorobor e vira prato. Porque a grande capacidade de sobrevivência do ser humano é exatamente o que é que tem, como é que faz. Resolve, vamos resolver. Então acho que essa é uma capacidade brasileira inata. Vamos resolver, vamos dar conta, vamos fazer isso aqui acontecer. Cara, eu me sinto um pouco isso, cara.

Eu cheguei em São Paulo em 2003, com a mão na frente e a outra atrás, como se diz, um ilustre desconhecido. E agradeço muito a generosidade de artistas como Aldemir Martins, como Octávio Araújo, como Marcelo Grassmann, como Rubens Matuck, que era um pessoal que já estava de escanteio no sentido dado mainstream. Mas eram os meus heróis. E foram esses caras que me receberam, me acolheram. E quando eu fui acolhido pelos meus heróis, eu disse, o negócio aqui é bom, eu mereço um reconhecimento aqui de gente muito importante. Pra mim, né?

E é isso que eu vejo acontecer. Eu chego, em 20 anos, eu reconstruí minha vida a partir disso, dessa coisa. Como foi que você fez? Não faço ideia, meu. Só sei que eu fiz e estou fazendo por conta disso, porque gosto do que faço, acho bonito o que faço. E quero fazer muito, né?

Então acho que isso é uma qualidade brasileira de vida, está nas pessoas. Eu fui agora um tempo atrás para o sertão, caiu o queixo de como está bonito, de como as pessoas estão... Porque houve uma melhora de condições de vida muito grande no nordeste, no sertão nordestino. Houve uma... da época que eu saí pra hoje, o pessoal hoje tem água. Você pensa que é uma coisa normal, não. Então, um dia desses, ninguém tinha água. Abre uma torneira, é um milagre. Acenda uma lâmpada, acenda uma... tem luz. Isso é um milagre, não tinha.


Então, tudo isso tem hoje. E essas pessoas... Poxa, eu fico muito feliz, cara, de ver essas coisas acontecendo no país, porque cada passinho que você dá não tem volta. Você estabelece uma nova realidade, sabe? De dignidade. As pessoas não aceitam mais ser humilhadas na hora que elas têm um reconhecimento. E isso... eu acho que a gente está longe de ser um país ideal. Longe, muito longe. Mas é um país que eu acredito que pode dar uma notícia de uma nova civilização nesse mundo, por conta da miscigenação.

Doug: Sergio, você falou um ponto que eu achei muito bacana, que é a coisa do espírito do tempo. Como é que, de alguma forma, a arte responde, dá uma resposta a isso. Como você vê a sua arte ou a arte contemporânea nesse diálogo com o digital, nesse diálogo com rede social, ou mais recente ainda com essa coisa de inteligência artificial, que de uma certa forma começa a roubar um pedacinho desse lugar artístico, criador. Como é que você vê essa interseção?


Sergio: Olha, eu acho que durante toda a história essas coisas existiram dentro do seu contexto. A gente está hoje em um outro contexto, um contexto de velocidade, de tecnologia muito mais avançada. Por outro lado, como a gente ia falar, as pessoas também são outras. Há uma mudança até genética no corpo, sem falar da mentalidade das pessoas. Há uma mudança generalizada que vai, de certa maneira, incorporando essas novas realidades.

Eu vou dizer uma coisa bem engraçada que aconteceu quando eu era mais jovem. Não sei se era a marca que era Coral ou era Suvinil, uma marca dessas de pintar parede, lançou uma tinta chamada fractal. E essa tinta fractal era o seguinte: você passava um rodo com essa tinta na parede, tinha um efeito químico com contato com o oxigênio, aí começava a criar fractais. Aí o cara disse para mim: “Está vendo, Sérgio? Perdeu esse teu emprego. Já tem pintura abstrata feita assim.”

Parece piada, mas é a mesma coisa com a inteligência artificial. A grande questão é que ela vai fazer muitas coisas. Um homem mesmo mostrou outro dia um grande painel que a inteligência artificial coletou de informação visual do planeta inteiro e criou lá. A coisa, Douglas, que nunca vai ser superada, é a mão humana, na medida que ela é a identificação sua consigo mesmo. O sujeito que as coisas que não têm a mão, elas têm uma distância humana da gente. Elas podem ser bonitas, podem ser interessantes, podem ser cativantes, mas cansam. Porque falta um lugar de conexão, que é você com aquilo feito por outro, que é você também.

Tem uma passagem muito interessante que aconteceu na década de 70, de um cara que entrou no Museu do Vaticano com um martelo escondido e meteu uma porrada na Pietà de Michelangelo. Quebrou o nariz, quebrou não sei o quê. Hoje ela está dentro de um redoma de vidro por conta desse tipo de loucura. Eu sempre achei um gesto muito intrigante alguém que se preste a pegar um martelo e quebrar uma obra como a Pietà de Michelangelo. E fiquei me perguntando por que alguém seria capaz de fazer isso. Pelo simples fato de que aquilo foi feito por um outro humano e, portanto, aquele outro humano estabeleceu um marco civilizatório. Um marco que diz assim: nós humanos somos capazes disso. Quando uma pessoa vai lá e destrói isso, ela está na verdade buscando retroceder à barbárie. Quebrar o marco civilizatório. Destruir a referência que nos faz humanos capazes de fazer aquilo. Se você não tem aquela referência, você pode virar um bruto. Pode virar um bárbaro. Porque não tem ninguém dizendo assim: “Você pode ser melhor, cara. Você pode ser mais bacana, você pode fazer isso. Um outro fez, você pode fazer algo semelhante.” Então a construção das coisas pela mão do homem é o que nos referenda enquanto humanos. Nesse sentido que eu digo, o que a inteligência artificial nunca vai poder reproduzir é alma. Alma não. A alma é uma coisa humana.

Doug: Muito interessante isso. Muito interessante. E como você vê, a inteligência artificial como algo também construído pelo homem, seria um marco civilizatório nesse sentido?

Sergio: Eu acho que ela é simultaneamente um marco civilizatório. Sim. Por que não? Ela é um avanço da nossa capacidade de criar instrumentos, instrumentalizar coisas para que a gente tenha um conforto maior. Por outro lado, ela deverá ser, a meu ver, eu penso, um grande instrumento no sentido da praticidade, da objetividade das coisas. Mas a experiência sensível está em outro lugar. Ela está em um lugar de transcendência. Ela está em um lugar da espiritualidade. Ela está em um lugar da espiritualidade. Eu não acredito que a inteligência artificial possa se espiritualizar. Aí seria uma... como posso chamar? Também não vou dizer que não. Eu não sei. Eu não sei mesmo. Eu acho que todas as gerações enfrentaram seus desafios. Essa é a nossa vez. São os nossos desafios. Eu não acho que a gente deva demonizar nada. Eu acho que a gente deve observar e tirar partido daquilo que pode ser interessante, pode ser bonito, pode ser bacana. Eu acho muito legal você chegar num... você ter uma casa, por exemplo, informatizada, sabe? Acenda a luz, cheguei. Tudo funciona. É legal, é ótimo. Mas você tem que ter cuidado, senão você não vai fazer exercício. Termina virando um obeso, um sedentário. São coisas que você tem que dosar nesse processo.

Gustavo: Você falou um pouquinho disso da mão humana de fazer e eu achei interessante você comentar que lá atrás você teve um período da sua vida em que você trabalhava muito, chegava, pintava. Como que hoje em dia, depois de ter vivido essa experiência e outras experiências, como que é a sua relação com o ato de pintar? Você acorda... como é essa relação? Você pinta todos os dias, isso precisa de uma inspiração? Ou é não, eu preciso começar a tal hora e a inspiração vem? Como que é?


Sergio: Essa coisa da inspiração é sempre... tem uma mistificação em relação a isso. O Picasso costumava dizer, eu não sei se existe, mas se existir, eu espero que ela me encontre trabalhando. E eu acho que a disciplina é o lugar onde as coisas acontecem. Eu acordo todo dia muito cedo, 7 horas eu estou aqui dentro. Pode ser que dê tudo errado, eu perco o que eu estava fazendo, boto para trás, ou posso não fazer nada, eu sento ali e vou ler um livro, ou vou ouvir uma música, mas eu estar aqui nesse ambiente é muito importante para mim. Então eu acho que a ideia de disciplina, a ideia de comprometimento... Hoje o fato de eu ter construído meu ateliê junto da minha casa foi uma sinuca, me colocou numa fria, porque às vezes vim de noite olhar o que eu estou fazendo. Hoje eu trabalho mais do que eu trabalhava quando estava em São Paulo. Bem mais, por um lado é bom, mas poxa, em São Paulo eu ia para casa, aqui eu não saía do meu ateliê praticamente, não é?

Mas enfim, eu acho que inspiração é algo que sim acontece, que vem esse momento de... Eu estou vivendo um momento de inspiração com essa nova série que está em curso, que é um lugar novo, não em termos formais, mas é um lugar novo em termos de qualidade pictórica, para mim. E eu estou apaixonado de poder me acordar cedo, vir para cá trabalhar. Eu não saberia viver sem isso, não saberia, não posso imaginar a vida sem fazer pintura. É para mim a única coisa que realmente faz sentido.

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Ficha técnica:

Criação e roteiro: Douglas Lima.

Apresentado por Douglas Lima e Gustavo Bittencourt.

Identidade visual e fotografias: Glauber.

Montagem e edição: Thiago Loducca.

Comunicação: Bia Varanis.